" As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas". (Fernando Pessoa)

A VIDA PODE NÃO NOS SORRIR, MAS NÓS QUEREMOS SORRIR PARA A VIDA


Tarde envergonhada pelo sol que teimava em fugir para longe.
Rostos fechados que apressadamente cruzam entre si pelas ruas num presente feito de desilusões.
Olhares de receio sobre um futuro que está cada vez mais ausente.
Seres que buscam a felicidade a troco de horas vividas em lugares vazios de esperança.

Unidos numa alma que se desgasta e que se sente impotente para alimentar os sonhos de todos e de cada um. Liberdade que se escapa. também ela, por entre os dedos duma realidade tecida das mentiras necessárias perante a morte que se julga próxima e inevitável.
Crianças que continuam a sorrir numa ingenuidade que nos apoquenta, jovens que vivem sonhos que sabem apenas podem durar uma noite, velhos que se sentem a dor do tempo e apenas esperam o escoar da vida.
Talvez tenha chegado o momento de darmos vida às palavras, aos afectos, aos sentimentos, e todos juntos gritarmos que somos gente, não números alinhados em fórmulas matemáticas de resultado universal.
Talvez tenha chegado o momento de juntarmos o nosso olhar e construir uma enorme e gigantesca lupa para melhor vermos a pequenez daqueles que se alimentam do nosso futuro.
Talvez tenha chegado o momento de deixarmos que a nossa alma se manifeste e nos liberte das amarras que nos impedem de sermos felizes.
A vida pode não nos sorrir, mas nós queremos sorrir para a vida.

(mariosantos.porto.setembro2011)

o meu...

O meu ar
é a tua alma que
respira ma minha boca.

(Teresa Gonçalves)

viver é...

Viver é a coisa mais rara do mundo.
A maioria das pessoas apenas existe.

(Óscar Wilde)

é possível...

É possível impôr silêncios ao sentimento,
não é, porém, possível marcar-lhe limites.

(Suzanne Necker)

NUNCA TE DISSE

nunca te disse
que o mar me vestia os sonhos
nem que os sorrisos cresciam com os sons da madrugada
mas também nunca intuíste
que o meu olhar se perde no horizonte
e nas penumbras que nele vagueiam
não sou raiz
nem âncora fundeada
sou apenas viagem atribulada

(João Carlos Esteves)
É por ti que se enchem os rios
de carpas azuis,
de águas que querem saltar 
pela minha janela.
Como é belo este silêncio ilimitado
quando nas copas redondas das árvores
o teu nome me chama.
Pedi-te que apagasses a lua
e que nos campos tacteando te encontrasse.
Sei-te na aurora, por isso não temo
e agora a lanterna dos dias pode
por fim ficar em ventos de abraços.
Voam aves dentro dos teus sonhos
como memórias de pétalas acordadas.
Ficas ancorado dentro do meu tempo.
Não há saudade nem solidão
que se não derrube.

(Lília Tavares)

ENSAIO DE CREPÚSCULO

inigualáveis
as lágrimas que abriram sulcos na terra que nos é chão

os veios das folhas tombadas
alojam-se nos rostos
em ensaio de crepúsculo

que face é esta
que me olha e não me reconhece?

(João Carlos Esteves)

(IN) SONORIDADES

Perturbam-me os gritos que ecoam em alguns silêncios. São mais inquietantes do que palavras que se soltam roucas, fundas, sonoras, das gargantas onde nascem. Apetece-me o recolhimento, porque me perturbam os gritos, os silêncios, as palavras…

(Rita Pais)

POEMA POR INVENTAR

os teus olhos são o verbo
que um dia o poeta inventará.

(João Carlos Esteves)

ATÉ DEPOIS

Preciso de tempo. Preciso de espaço. Preciso de mim. Não posso sufocar na minha própria estagnação. Não posso acomodar-me no facilitismo do déjà vu. Não quero adormecer nos ecos de palavras ditas, escritas, revisitadas. Devo abrir as portas a novas transgressões. A um outro gostar. A um estar após a catarse de ser. A complexidade é o antónimo do tédio. E os labirintos que conheço já não me atraem, já nada me dizem. Quebrar as correntes que me cerceiam, fazer girar a chave no ferrolho que enclausura as vontades que me provocam, ouvi-las e libertá-las. Deixar marcas de passos que ainda não dei em terreno desconhecido sem temer o «e depois?» Depois… está tão longe e no entanto sinto-o tão perto… sem hesitações, é para lá que vou!

(Rita Pais)

ENQUANTO UM CAFÉ ESFRIA

Hesito em pedir mais um café.
Há muito que acenei
para que levassem a tua chávena,
não tolerava mais o lento esfriar 
de um lugar vazio.
Há manhãs em que as esperas são vãs,
as noites esgotaram desejos de presença.
A tua ausência está do outro lado da rua
e oiço a onomatopeia dos teus passos
em orgulhoso mas inconfesso apelo.
És uma equação facilmente resolúvel
e sabes que eu sou uma tese 
complexa de demonstrar.
Interrogas-te se vou ou se fico.
Na incerteza, rodas a chave na fechadura,
entras no teu reduto defensivo,
mas deixas a porta entreaberta…

(Rita Pais)

ACTO ÚNICO

Estende os lençóis 
na cama onde dormem os sonhos
Cobre-os com a cor 
do desassossego que os desperta
Ajeita o teu corpo 
como quando me esperas
Desconstrói a urgência que o arqueia
É no vagar do meu olhar nu
que te dedilho os contornos
sacio as penumbras da ausência
e despeço a saudade 
do sabor dos teus lábios
no ventre dos abraços
em que se deita o desejo…

(Rita Pais)

O SORRISO


Creio que foi o sorriso, 
o sorriso foi quem abriu a porta. 
Era um sorriso com muita luz 
lá dentro, apetecia 
entrar nele, tirar a roupa, ficar 
nu dentro daquele sorriso. 
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.                  
(Eugénio de Andrade)


DIA 7

Mudei. Mudaste. Mudou-se o "eu" em ti, o "tu" em mim. Agora.
Num tempo em que se fazem chávenas de plástico, quando abanamos as árvores, pouca coisa cai. 
E já nem nos perguntamos o que fazemos aqui.
Vamos andando, eu hei-de descobrir. Sigo os meus instintos de uma forma sólida, cega, e barata. 
Não há pior que isto. Nem melhor. Os nossos dias têm cada vez menos vida. 
Por isso damos palpites. 
Como se isso fosse uma mudança.
Culpados ou inocentes, ainda não reparámos no que está a acontecer ao que sobrou de nós.
Mas vamos tentar salvar o mundo. 
E confirmar que somos mais
do que a soma das coisas que fizemos.

PALAVRA QUE DESNUDO

Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo

(Mia Couto)